Friday, February 19, 2016

Valter Marques
S O S
Arrebatamento




Notícia de última hora: Milhares, talvez milhões de pessoas desaparecidas. O mundo acordou com o desaparecimento de milhares, talvez milhões de pessoas por todo o mundo. Os que ficaram procuram pelos seus familiares e amigos ausentes. O acontecimento em massa levou a inúmeros acidentes rodoviários, embarcações desgovernadas, aviões caídos, incêndios em edifícios e muitas outras catástrofes. O caos originou mais caos, como motins, carros incendiados e saques a lojas espalham-se por várias cidades e capitais. Todos os países estão em alerta máximo, forças militares e policiais patrulham e investigam no terreno. As linhas de emergência estão entupidas. Os prejuízos humanos, financeiros e económicos são nesta altura incalculáveis.” (Excerto de: Notícias ao Segundo – Notícias do país e do mundo)


— Sabes que o Valter é um dos desaparecidos e os pais também desapareceram. — Afirmou Paulo Castanheiro falando ao telemóvel com o amigo. — E na minha aldeia sei de pelo menos mais uma pessoa. Viste os ovnis na televisão? Há quem diga que eles são os responsáveis pelos desaparecimentos. Há ovnis por todo o lado, está um enorme por cima da Sé de Viseu, pairando no ar, silencioso, desafiando a gravidade aparentemente sem esforço. Hum, não sei, dizem que são amigáveis, mas não acredito. Até agora não houve atos de violência, é verdade. Tudo isto me deixa confuso, na verdade os cristãos falam no Arrebatamento há muitos anos. No Facebook do Valter, na descrição do seu perfil, encontrei um link para um site religioso onde descrevem esse tal de Arrebatamento. Mais estranho ainda é a carta escrita pelo próprio Valter explicando o futuro desaparecimento massivo e alertando para o embuste que seria perpetrado.
        — Vê o que está dar na TV, transmissão em direto de Jerusalém…. — Exortou o José Palito encostando a boca ainda mais no telemóvel. Paulo notou o tom aflitivo do amigo e virou-se para conseguir ver a TV projetada na parede interior do bar que costumava frequentar. Sentiu um arrepio na nuca ao ver a imagem majestosa e imponente da criatura de luz ao mesmo tempo infernal e angelical. — Efetua milagres, estão a dizer que é Deus! Autointitula-se de Deus. As pessoas estão a adorá-lo!
        — Tem traços de anjo, é verdade, no entanto há algo nele que me assusta profundamente! A carta mencionava os falsos messias e os seus grandes sinais e prodígios que enganariam as gentes. Sim, maus tempos nos esperam daqui em diante. A perseguição aos cristãos vai aumentar exponencialmente, a liberdade religiosa findará e as tribulações aumentarão! Afogamo-nos sem saber, é mister que não falhemos o último barco salva-vidas. A salvação por Jesus daqueles que o receberem e não aceitarem a marca da besta. Se a isso for obrigado, fugirei para o fim do mundo e lá encontrarei um buraco para me esconder...
        — Oh! Buraco!? Para onde irias tu?
        — Ainda não sei, mas alguma coisa me ocorrerá.

Durante várias semanas o Paulo preparou-se para o exílio. Em viagens de prospeção na sua mota de crosse encontrou na serra um lugar que era agreste e isolado. Fez tudo às escondidas, não podia e não queria confiar em outras pessoas. Armazenou em três sítios diferentes a comida com longa duração de validade que comprara. Um dos locais era a pequena gruta que seria a sua moradia principal. Com muito esforço conseguira ampliar o espaço interior a dimensões habitáveis, retirando algumas toneladas de terra pela estreita abertura e espalhando-as ao vento. Os outros locais seriam principalmente armazéns de víveres e pontos alternativos de refúgio, funcionais porém mais pequenos. No dia da mudança final, Paulo saiu de casa na sua mota e viajou até um ermo a quatro quilómetros do refúgio principal. Embrulhou o veículo numa lona e cobriu-o de terra e caruma. Viajava leve, pois a maioria das coisas já tinha transportado em viagens anteriores. O resto do percurso percorreria a pé.

Um vento frio e sonoro atravessava a montanha. Ele restolhava nas árvores e silvava nas rochas com sobranceria. Sob o céu negro, Paulo, sentia o calor corporal ser-lhe roubado com cada lambidela gélida. Quando entrou no buraco a que chamaria de casa nos próximos dias e anos, sentiu-se aliviado. Acomodado no interior, rolou uma pedra espalmada até tapar a abertura e finalizou com um cortinado em pano grosso. Certo que luz alguma seria visível do exterior, ligou a lanterna de cabeça e em seguida procurou e retirou duma caixa cheia de baterias um pequeno rádio AM/FM. Sentado no colchão e encostado à parede granítica, ligou o aparelho recetor: “…obrigando as pessoas que vivem nas áreas controladas a converterem-se ao islamismo e sob a lei charia, o estado islâmico continua a crescer em área e quantidade de seguidores. A alternativa à conversão é a tortura, mutilação e morte….” Com raiva o Paulo desligou o rádio e atestou:
        — É mil vezes melhor o espírito vivo, ao corpo morto!


Alguns anos depois:
Apesar de banhada pelo Sol nascente a manhã era fria. Os raios solares diluíam lentamente o manto de orvalho congelado que cobria a montanha. O Paulo Castanheiro ergueu-se com a primeira luz e, como de habitual, começou a ler a Bíblia. Longe da internet, telemóveis, televisão e muitas outras distrações, finalmente tinha tempo para Deus. Agora que estava sozinho, a solidão desaparecera e pela primeira vez sentia paz, a verdadeira paz. Antes de sair para verificar as três armadilhas que tinha armado no dia anterior, tomou o pequeno-almoço de feijões cozidos com presunto. Evitava o uso de artifícios que, obviamente, anunciavam presença humana na área. Por isso limitava o seu uso e para cozinhar a caça acendia pequenas fogueiras durante a noite no interior da caverna. Habituara-se ao fumo proveniente da combustão lenta da lenha e da carne a assar. O Paulo desceu no terreno até encontrar a primeira armadilha armada e vazia. Dez minutos depois via uma outra que estava desarmada e vazia, armou-a. Dirigia-se à última armadilha quando escutou o latir de cães de caça e comoção alguns metros à frente. Não teve dúvidas de que se tratava de uma patrulha em ronda e rapidamente bateu em retirada. Não regressou ao abrigo, fazê-lo seria um erro pois os cães pisteiros facilmente o farejariam. Era a altura de colocar o plano de emergência em ação e com essa intenção correu na direção da lagoa a noroeste. Já perto da margem, por entre um amontoado de rochas, retirou o saco hermético que continha o fato de mergulho. Trocou de vestimentas e colocou no saco as roupas antigas, mais uma rocha para que não viesse à tona. Sob a pressão crescente dos latidos frenéticos dos cães farejadores, o Paulo mergulhou e nadou até um amontoado de juncos. Manteve-se submerso utilizando o tubo respirador para a troca de ar com o exterior. Quando começou a ficar gelado, urinou dentro do fato para se aquecer. Durante uma hora resistiu à tentação de emergir. Finalmente decidiu espreitar por entre a vegetação. Apesar de as margens estarem tranquilas, ficou mais alguns minutos observando-as. A tremer de frio regressou à margem e esperou até escurecer.

Sob a luz ténue do quarto crescente, Paulo dirigiu-se a um dos abrigos secundários. Não mais voltaria a entrar no abrigo principal. Quase exausto, afastou os arbustos que davam acesso ao buraco de entrada e arrastou-se para o interior. Encantoado, abriu uma lata de comida em conserva e comeu até ao fim. Queria dormir, mas o medo mantinha-o acordado. Receava que os cães pudessem apanhar o seu rasto e o seguissem até à nova localização, encurralando-o. Apenas quando começou a chover é que Paulo se sentiu mais seguro. A chuva apagaria os odores e desmotivaria os perseguidores. Adormeceu rapidamente.


Um barulho assustador como o de mil leões a rugir acordou o Paulo. Ele saltou da posição de deitado e foi até à entrada do refúgio. Uma luz branca como a neve iluminava o céu e toda a terra. Era dia, no entanto, extraordinariamente, não era dia. Era o maior meteorito que algum dia um ser vivo presenciara. Uma montanha rompia a atmosfera e caía em direção à Terra. Sabendo que não valeria a pena fugir, Paulo saiu do esconderijo, ajoelhou-se nas ervas altas e proferiu “Jesus! JESUS!” O fim veio para muitos, mas para Paulo Castanheiro foi apenas o início.




Friday, December 7, 2012

ESTÁ DISPONÍVEL PARA DOWNLOAD GRATUITO A DAGON # 3



Depois de publicar a Dagon # 2, em Outubro de 2012, com contos fantásticos de um dos meus autores favoritos, Adam-Troy Castro, e de uma das pessoas ligadas à ficção especulativa portuguesa que mais admiro, Ricardo Loureiro, bem como com um artigo histórico de um dos melhores autores de ficção científica de todos os tempos, Stanislaw Lem, sabia que não seria tarefa fácil alcançar o mesmo nível de qualidade nas páginas da Dagon # 3. Mas, devo confessar, o desafio era muito aliciante.

Foi esse desafio que me levou a escolher um conto que fez as delícias de milhares de fãs de ficção especulativa espalhados pelo Mundo, “26 Macacos e também o Abismo”, conto vencedor do World Fantasy Award em 2009 e finalista nos prémios Hugo e Nebula em 2008. Este conto escrito pela incontornável Kij Johnson, que ganhou também os prémios Hugo em 2010 e 2012, e Nebula em 2009, 2010 e 2012, leva-nos a conhecer Aimee, que depois de comprar, por um dólar, um número de circo com 26 Macacos, tenta descobrir como desaparecem 26 macacos de dentro de uma banheira suspensa 3 metros no ar, e para onde irão estes macacos depois de desaparecerem…

A escolha do segundo conto acabou por recair em “Interplanetas”, da autoria de um autor com quem já tinha tido a oportunidade de trabalhar e o prazer de publicar no # 1 da fanzine Fénix, Valter Marques. Devo confessar que aprecio bastante os contos do Valter pelo seu humor subtil e pelas situações insólitas que os seus personagens têm de enfrentar. Não hesitem em embarcar nesta estranha viagem a bordo da “composição ferroviária InterPlanetas, com destino à Grande Nebulosa de Fartolon”.

Notarão os leitores certamente que esta é a primeira vez que um número da Dagon é publicado sem um artigo. Este facto deve-se a uma opção editorial: devido à periodicidade de publicação mensal, acabei por decidir publicar um bom artigo a cada dois números, conseguindo assim mais tempo para escolher melhores artigos e mais tempo para o trabalho editorial associado a essa escolha.

Uma nota para a excelente ilustração de capa da autoria de Tomasz Maronski, ilustrador que já viu os seus trabalhos fazerem a capa de revistas como a Asimov’s e a Clarkesworld e dos livros de Brian Aldiss e Robert Silverberg.

Este é mais um número que me enche de orgulho e satisfação e que é fruto do trabalho de muitas pessoas, às quais deixo o meu agradecimento sincero.

Espero que este # 3 da Dagon seja mais um sucesso junto de vós, leitores, que são a verdadeira razão para a existência da Dagon!
Roberto Bilro Mendes
29 de Novembro de 2012


“Esta não é a melhor revista do Fantástico nacional, esta não é a única revista do fantástico nacional, aqui não vão encontrar auto promoções encapotadas, nada do que aqui podem ler é o “melhor do mundo”, não encontrarão nestas páginas desenhos maravilhosos e tintas mirabolantes. É “apenas” literatura, escrita e traduzida com muito amor ao género e editada por pura carolice. Esta é apenas a vossa “Dagon”! Se assim deixar de ser, o projecto não poderá mais existir…”